Esta marca procura superar a instintiva ilusão de que possuímos uma auto-natureza, um eu ou ego (sânsc. atman, páli atta). De acordo com a filosofia hindu, esse "eu verdadeiro" seria uma entidade pessoal intrínseca, imutável, independente, atemporal e indestrutível. Porém, o Buddha descobriu que essa individualidade não existe de forma inerente ou duradoura; não há algo separado que experimente os fenômenos. A partir da ignorância — isto é, da crença no "eu" — surge os venenos mentais da cobiça — o "eu quero" — e da aversão — "eu não quero".Apesar de dizermos "meu corpo, minha mente", não há um "eu" que seja o dono do corpo e da mente. Aquilo que convencionalmente chamamos de "eu" ou "ego" não existe por si mesmo como uma essência concreta, substancial. Ele surge apenas de forma relativa e dependente de cinco agregados — forma, sensação, percepção, vontade e consciência. Esta ausência de uma identidade imutável e independente foi chamada pelo Buddha de não-eu ou não-ego (sânsc. anatman, páli anatta). Ao contrário da crença errônea em uma individualidade inerentemente existente (sânsc. pudgala-atmagraha), o Buddha apresenta a ausência de existência inerente da individualidade (sânsc. pudgala-nairatmya).
Tendo eliminado todas as idéias com respeito ao "eu", sempre plenamente atento, veja o mundo como vazio. Dessa forma, uma pessoa está acima e além da morte.
(Pingiya Manava Puccha, Sutta Nipata V।16)
Todos temos um claro senso de individualidade, um senso do "eu"। Sabemos a quem estamos nos referindo quando pensamos: "Vou trabalhar", "Estou indo para casa" ou "Estou com fome"। Até os animais têm uma noção de identidade, embora não possam expressá-la em palavras do modo como podemos. Quando tentamos identificar e entender o que é esse "eu", fica muito difícil apontar com precisão. Na antiga Índia, muitos filósofos hindus especularam que esse "eu" seria independente da mente e do corpo da pessoa. Eles sentiram que deveria existir uma entidade que pudesse proporcionar continuidade entre os diferentes estágios do "eu", tais o "eu" de "quando eu era jovem" ou de "quando eu ficar velho" e mesmo o "eu" numa ida passada e o "eu" numa vida futura. Como todos esses diferentes "eus" são transitórios e impermanentes, sentia-se que deveria existir algum "eu" unitário e permanente que possuísse aqueles diferentes estágios da vida. Essa foi a base para postular um "eu" distinto da mente e do corpo. Eles o chamaram de atman. De fato, todos aceitamos tal noção de "eu". Examinando como percebemos esse senso de "eu", nós veremos que o consideramos o cerne de nosso ser. Não o experienciamos como um conjunto de braços, pernas, cabeça e tronco, mas em vez disso pensamos nele como o senhor dessas partes. Por exemplo, não penso em meu braço como "eu", penso nele como "meu braço"; e penso em "minha mente" do mesmo modo, como pertencendo a mim. Somos levados a reconhecer que acreditamos em um "eu" auto-suficiente e independente no cerne de nosso ser, possuindo as partes que nos formam.O que há de errado nessa crença? Como esse "eu" imutável, eterno e unitário, que é independente da mente e do corpo, pode ser contestado? Os filósofos buddhistas afirmam que o "eu" só pode ser entendido em relação direta com o complexo mente-corpo. Eles explicam que, se existisse um atman ou "eu", ele teria que ser separado das partes impermanentes que o constituem — a mente e o corpo — ou teria que ser uno com essas partes. No entanto, se fosse separado da mente e do corpo, não seria pertinente, visto que não teria nenhuma relação com eles. E sugerir que um "eu" permanente e indivisível pudesse ser uno com as partes impermanentes que constituem a mente e o corpo é absurdo. Por quê? Porque o "eu" é único e individual, enquanto as partes são numerosas. Como pode uma entidade sem partes ter partes?Desse modo, qual é a natureza desse "eu" com o qual estamos tão familiarizados? Alguns filósofos buddhistas inclinam-se para o conjunto de partes da mente e do corpo e consideram o "eu" a soma delas. Outros afirmam que o continuum de nossa consciência mental deve ser o eu. Existe também a crença de uma alguma faculdade mental separada, uma "mente base de tudo", é o "eu". Todas essas noções são tentativas de ajustar nossa crença inata em um "eu" substancial, ao mesmo tempo que se reconhece a insubstancialidade da solidez e permanência que naturalmente atribuímos a ele.
(Dalai Lama, Um Coração Aberto)
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